segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Como eu toquei na mão que vai governar Portugal

A noite estava fria. A viagem de Coimbra com destino à capital foi longa, com uma merecida paragem em Leiria para um merecido repasto . Durante a viagem, fiquei a saber que o país tinha mudado. O PS atingia uma maioria histórica. A chegada à Praça de Espanha, destino da minha boleia, correu sem sobressaltos. O carro dos meus pais esperava-me lá e o espírito animava-se com a possibilidade de uma deslocação ao Largo do Rato. A bandeira dentro do carro fez-me participar mais activamente na festa da nova maioria. Vidro aberto, bandeira desfraldada, acenando aos carros que passavam.
O destino mudou com o corte da estrada a caminho do Rato. Íamos agora para o Hotel Altis. A multidão esperava, não só o discurso do novo líder do país, mas a saída do novo Primeiro-Ministro. A voz revolucionária de Manuel Alegre empolgava os presentes, fazendo-se ouvir nas colunas de som. O discurso vitorioso do Engenheiro da Covilhã ecoou naquela rua, fazendo agitar bandeiras a cada parágrafo.
O fim do discurso trouxe os directos das televisões para a porta do hotel. O repórter da SIC, mesmo à minha frente, fazia alongamentos antes de iniciar a reportagem. Também eu lá estava à porta, esperando ao frio e ao vento, de bandeira na mão.
Nisto sai Sócrates, qual D.Sebastião, por entre as portas rotativas, mergulhando na multidão. Um batalhão de jornalistas e fotógrafos esperavam-no. Empoleirado no tronco de um plátano, não via mais do que uma massa de gente e câmeras e máquinas fotográficas. Nem daquele nível conseguia vislumbrar o líder do próximo governo. Por entre as bandeiras esvoaçantes, tentava encontrar os seus cabelos grisalhos. A massa humana dirigia-se para um automóvel. Não aquele que mais perto estava de mim, mas um à frente do mesmo. Perdi a esperança de o ver de perto. Mas a garganta não parou de gritar em conjunto com as outras.
De repente, como uma finta do futebol, a massa de máquinas fotográficas muda de rumo, dirigindo-se agora na minha direcção e na direcção do Volvo S80, à minha beira. A multidão empurrou, mas mantive-me firme e hirto, junto ao plátano que antes me servia de escadote. O secretário-geral aproximava-se cada vez mais dali, até que se deteve junto à viatura que inicialmente suspeitava ser a dele. Antes de abrir a porta, Sócrates parou para acenar à multidão encostado à viatura. Nas costas dele, a escasso metro e pouco, esforcei-me por furar mais um pouco. Neste momento, ele virou-se para trás e acenou.
A mão dele no ar, ali, cortando a luz ofuscante dos holofotes, tão perto. Ergo também a minha na sua direcção. Toquei-.lhe na mão, nem tímido, nem bruto. A resposta não se fez esperar: um aperto de mão firme que me encheu de orgulho. Naquele momento senti-me importante. O novo Primeiro-Ministro apertara-me a mão. Estando em Coimbra, fui obrigado a abster-me pela primeira vez numas eleições. Aquele momento foi como uma benção, um perdão. Não fui à urna, mas estive ali, junto do povo, a festejar a mudança. A mão dele, tal como pensava, é uma mão cuidada, que nenhum detergente de loiça ousou estragar.
Depois, o futuro Chefe de Governo desapareceu, escondendo-se no sossego do automóvel. Através da janela do carro, pareceu-me ler-lhe nos lábios, enquanto falava com o motorista: "Ambrósio...não vais acreditar a quem acabei de apertar a mão!!"